sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Melado

A vida inteira guardada em cascatas de antigamente,
Sabor de rapadura derretida em melado agreste,
Um passo de dança parado em saltos de memória,
Ao mínimo movimento de olhos cerrados.
Um filme com aroma de música adocicando o tempo,
E o coração salta aprisionado em lembranças.
Projetos oníricos suavizam medos antecipados,
Um leve gosto de casa cheia no sorriso de meu pai.

Virgínia Heine

Esmeril

Sinto saudades de mim.
A desistência é a incredulidade
Estampada na apatia sem cor.
Pedaços de crenças caídas no chão
Em estilhaços de memórias
Partidas no espelho quebrado.
Sonhos escondidos no reflexo
Fissurado dos pedaços disformes.
Onde está o esmeril dos desejos
Perdido na excitação do tempo deixado para trás?


Virgínia Heine

segunda-feira, 8 de março de 2010

Nietzsche

"A vantagem de ter péssima memória é divertir-se muitas vezes com as mesmas coisas boas como se fosse a primeira vez."

Cansei

Cansei
De ver a mentira travestida de verdade
Do cinismo metálico
Do poder estalando na língua dos políticos
Cansei
Da estupidez conformada
Da massa deformada
Da celebridade inventada
Cansei
Da inversão assentada
Da conformidade medíocre
Da apatia em nome de Deus
Cansei
Da indústria da miséria
Dos políticos depravados
De suas caras sofismando na TV
Cansei
Da juventude forjada
Das expressões de matéria plástica
Das risadas suturadas
Cansei
Da pobreza das almas
Dos herois de araque
Dos sons repetitivos dos atabaques
Cansei
De dia das mulheres
De ilusão em migalhas
De cegueira generalizada
Cansei
Do culto à magreza
Dos músculos anabolizados
De um hedonismo sem prazer
Cansei
Da transferência de responsabilidades
Da farsa togada em corpos da lei
Dos votos disfarçados de democracia
Cansei
Dos caudilhos da América colonizada
Das metrópoles expatriadas
Da vulgaridade dos crentes
Cansei
Da lógica que premia os sofistas do mal
Das pizzas guardiãs da impunidade
Dos mensaleiros e mensalões
Cansei
Dos neologismos carentes de juízo
Da inútil sina da verdade
Das repetições com defeito
Cansei da pobreza das ideias
E das máscaras cortadas a bisturi.

Virgínia Heine

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Marés

Quando o tempo ousa perceber
As mudanças das marés
Sensações se dispersam
No rastro de novos sonhos
Então tudo o que está preso
Se descola de velhas medidas
Reinventando movimentos
De caleidoscópios distintos
Quase cheios de formas
Que se agitam e se perdem
Nas cores de memórias distantes.

Virgínia Heine

Despedida

Um dia
Você me chegou menino,
Sorriso no bolso
E sonhos a um tostão.

Um dia
Nos apalpamos as diferenças
E contando estrelas,
Gritamos ilusões.

Um dia
Nos pensamos um,
Construímos esperanças
E brindamos ao amor.

Um dia
Multiplicamos intenções
E num rasgo de eternidade,
Nos ampliamos outras vidas.

Um dia
Eclipsamos fantasias,
Nos olhamos modestamente
E concordamos as distâncias.

Um dia
O homem arquivou o sorriso
E esquecendo-se do menino,
Fez do brilho um comércio último tipo.

Um dia
Enforcado em gravatas,
Perdeu-se em incontáveis máscaras
E embriagou-se de emoções a granel.

Um dia
Perdi toda a intimidade
Olhei bem...vi um estranho,
E fui embora dizendo adeus.

Virgínia Heine

Maria José

José de Maria ou Maria de José
Maria e José Maria José
Agreste que nem José
Meio Maria em meio a Josés
Maria sem nome nem sobrenome
Maria sem nenhum José
Maria sem querer porque quem quer
Pode ser José mas não Maria
Negra Maria cor da noite
Crente que nem Maria
Nefasta é a marca que traz no corpo
De Maria mas podia ser de José
Mas não é porque Maria esqueceu que quer.

Virgínia Heine

Duda

Um olhar de sofrimento acostumado
Muitos passos pisados no chão do tempo
O ritmo é idoso e cadenciado
Marcas de desesperanças em rugas
Abrindo-se em vincos no rosto negro
Um breve andar de árida emoção
Seca rudeza retirante
Dorso curvado a anunciar o fim
O desejo constante da partida
Apagando a magia do que sorria fácil
Um incontrolável tremor de repente
Faz protelar a hora que não tarda a chegar.

Virgínia Heine

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Encantamento

Estou vivendo um momento que não consigo denominar a patologia
é um de aperto no peito
e um frio no estômago

com pensamentos dispersados
que ao mesmo tempo me confundem
e me deixa com o gosto suave da alegria

é um sentimento avassalador
que me tira do sério
e também me deixa extremamente séria

tem horas que quero dançar livrementte
e em outros me trancar no quarto escuro da solidão

meu riso é solto, mas
constato um defeito nos meus olhos
que são lágrimas que teimam em vazar

é um contentamento descontente
de uma paixão não correspondida

Mas é também um suave lembrar de momentos mágicos

isso é amor
meu amor?

ou não?

paixões passam enfeitando a vida da gente

Darlene Mello

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Silence in dead words

Suffocate I’m feeling with all
The words crossing my throat
Claiming to leave the shady
Space of my own inside

Suffocate I’m feeling with all
Those meanings stuck in their
Own solitude being speechless
Without their aim of exchanging

Suffocate I’m feeling with all
The immensity of silence claiming
To exist without the demanding
Of slavery distant of my dignity

Suffocate I’m feeling with all
The flood of words coming from
Outside of myself bury me
In my own uselessness

Suffocate I’m feeling with all
The barriers built to shut my
Chances of being down instead of
Existing to create personality to share

I remain quit on my own giving up
To make myself understood
I just move on like a corpse myself.

Virgínia Heine

Minha docilusão

Chego ao alto do mar
E no fundo do céu,
No cume do mundo.
Até nas estrelas consigo encostar
E o perfume da flor
Quando se espalha no ar
M’ embriaga de vez
E m’inunda de angustia, pois,
Em ti, não consigo tocar.
Fantasia, romance, é tudo ilusão.
Assim pensam os velhos
E seu sábio coração ancião,
Que muito cansado de por aqui sofrer
Prefere não crer que,
Pelos mundos da rua ainda exista paixão
Petrificado coração navegante da seca.
Não procura mais não, pois,
Sem a ilusão do mar
Coração algum pode navegar.

J.P.Guéron

Sonhos de-verão

E o sol quente lá fora
Em quanto aqui dentro, ela mora.
Vem o dia, mas vai logo embora,
Se esvai sem demora.

E o sol quente lá fora..

Mas você não me larga
Me agarra sem hora - Ora bola!
- Será que realmente está?
Que é concreto-matéria, tijolo e cimento
Mas não, o cheiro que sinto
que faz tudo tão produto-bruto
É só mais um fruto, do meu coração

E o sol quente lá fora...
E eu prisioneiro.
Não tem sol, não tem mar,
Me satisfaz o seu cheiro
Cheiro que não está, odor que faz sonhar.

Não digo que não vem, pois vem.
Mas vai logo embora,
Como um dia de inverno.

E o sol quente lá fora?

Meu a-mar é extremo
Pode-se dizer: polar
Mas tu não deixas o equador
Preferes a mediocridade para te amornar,
pois temes o frio e repetes a máxima:
“Pés no chão para nunca sangrar!”
-Vamos lá, vamos lá.
embarque comigo para o alto do mar!

J.P.Guéron

sábado, 2 de janeiro de 2010

"Somos o que fazemos, mas somos principalmente o que fazemos para mudar o que somos"
Eduardo Galeano

Oração de fim de ano

Chega o ano novo e sempre chega
Simbolizando de novo ele chega
A ensinar novas possibilidades
De recriação do sonho cansado
Do ano que termina querendo
A despedida do que foi vivido
Como algo que precisa mudar

Chega o ano novo e inventamos
Ilusões novas de recomeço
Deixando para trás as compulsórias
Batalhas incansáveis e fechamos
Os olhos e apertamos os lábios
Em preces a Deus aos deuses
Orixás e nossos mortos divinizados

Chega o ano novo e damos um sentido
A tudo o que não entendemos e
Transformamos o mal em bem querendo
Acreditar que chuva limpa que sol energiza
Que o vento varre todos os males do mundo
Que a noite nos aconchega com seu negro manto e
O dia faz renascer todas as nossas esperanças

Chega o ano novo e queremos esquecer
A dureza da vida e os medos que nos atormentam
E pensamos à meia noite que somos todos irmãos
No sagrado ato de viver e naqueles minutos eternos
Oramos juntos pelo que não podemos jamais sustentar
Sempre que aquela eternidade de meia noite
Se esvai com a novíssima velha rotina recém chegada

Chega o ano novo e sempre chega
Querendo ficar para sempre em tudo
O que amamos e não queremos largar
Chega o ano novo e chega de mansinho
Tentando enganar nossas desilusões
Engrandecer tudo o que é pequeno em nós
Dissipar nossa certeza de finitude

Chega o ano novo e sempre chega...

Virgínia Heine