quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Amor

O amor é uma capacidade para a vida, uma competência para a saúde. Quando penso no amor, imagino um rio que certamente dará no mar. Um curso que segue, a despeito das curvas que se ponham em seu caminho.

O amor é um desejo irrecuperável de olhar o outro e enxergar o desejo espelhado no olhar desse outro. Desse outro que eu amo e que não sou eu. O amor é a consciência de que eu mesma desejo. É a construção dos meus próprios caminhos, que serão ilimitados na minha disponibilidade de sonhar. É, ao mesmo tempo, a minha percepção de meus limites diante do mundo e do outro.

O amor é a minha disponibilidade de ser olhado pelo outro. É a minha disposição em me colocar no lugar do outro, sempre sabendo que aquele outro não sou eu mesma. Aquele outro no lugar de quem me coloquei é definitivamente diferente de mim.

O amor não tem que dar conta de nada. O amor simplesmente dá conta. O amor dá conta até de que há momentos em que não dá conta. O amor é uma competência que tenho... naturalmente. Mas o amor é trabalho árduo, é a construção laboriosa daquilo que já existe em mim. O amor é o que entendo com o meu corpo daquilo que está no outro.

O amor é um campo que se estabelece entre mim e o mundo, entre mim e um outro que me afeta, que me toca os sentidos, a emoção, o desejo, a necessidade. O amor é um encontro. É uma economia dinâmica que alcança um outro, o mundo. É eu poder parar, silenciar, para simplesmente me deixar afetar pelo outro, me descobrir pelo outro. É permitir que o outro se descubra em mim.

O amor tem movimento. É também estático. O amor avança e pára. O amor é dança. Mas sua música só é afinada porque muitas vezes perde o tom. O amor também desafina. O amor é calmo. É também tensão. O amor flui de verdade nesse campo de energia, quando se pode compreender que diante de mim há um objeto amoroso, que é sujeito de si.

Primeiro é preciso o amor do outro, do amparo, do reconhecimento de um outro, que me acolha e nomeie. Depois há a separação do outro para que o sujeito se forme numa identidade própria. Daí surge o amor à vida, às coisas que existem no mundo, à coletividade. Mas tudo isso se dá com muito sofrimento e dor. São necessárias muitas mortes para que surja a vida. E tudo isso para que a vida seja maior do que o espaço do útero de minha mãe, dos braços do meu amado, das paredes de minha casa, de mim como centro do mundo. O amor é antes de tudo o amor ao amor, o amor de amar.

O amor que ama não quer assujeitar. Ou quando quer, pode ouvir a voz desse outro sujeito que não quer ser assujeitado. O amor só existe na relação. Até na relação que estabeleço com minha própria existência. É a partir da relação que estabeleço comigo mesma, com meus desejos, meus medos, com meus limites é que me torno mais capacitada para me permitir ser afetada pelo outro, com quem vou me relacionar.

Meu desejo de me relacionar é amplo e acontece em composições variadas. As relações de amor se formam em redes. O amor expande, é algo que se elastece. Quando me esvazio do amor, contraio. O amor é disponibilidade. É também a compreensão de que nem sempre a minha disponibilidade irá afetar as disponibilidades do outro. O amor se realiza verdadeiramente quando o campo amoroso acontece para que se movimentem as minhas energias juntamente com as energias que vêm do outro.

O amor é macro. Tenho que amar muitas vezes a muitas formas de amor para compreender que o amor em seu dinamismo pode se transformar. Por isso muitas vezes amo a muitos amores que ficam ou que vão. Uns ficam, outros vão. Uns vão sem deixar saudades, outros vão e me deixam vazia. Mas outros mais virão, e nessa música sempre me preencho mais uma vez. E se me preencho de novo é porque meu preenchimento está em minha potência amorosa, aberta ao encontro com o outro.

O amor é camaleônico, se se esvai por aqui, se complementa mais uma vez por ali. É por isso que não existe amor sem dor. Um depende do outro, assim como a vida depende da morte. Morro muitas vezes na vida, para poder me capacitar a viver mais e melhor, num exercício infinito. Até que a minha morte chegue definitiva. Mas ainda assim vou continuar vivendo muitas vidas na vida que deixei no meu amor no outro.

Então, para mim, o amor ele é substantivo, é verbo, é plural. O amor é um desejo permanente e multiplicado de vida, de paixão. Só amo se me apaixono, pela vida, pelos meus pares, pelos meus filhos, pelo meu companheiro, pelo ser humano, pelo mundo, pelas minhas crenças, pelo conhecimento, pela palavra que vem do outro, pela minha criação, pela apreensão da criação do outro, pelo meu igual, que será sempre absolutamente diferente de mim. O amor é o toque dos deuses em tudo o que tem vida.

Virgínia Heine

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